Em 25/05/2020 às 23h51
No momento em que escrevo, as Secretarias estaduais de Saúde confirmam 365.213 casos do novo coronavírus (Sars-CoV-2) no país, com 22.746 mortes no Brasil. Devido à falta de testes, estes números oficiais podem (e devem) estar, certamente, subdimensionados. É como se a cada dia 2 ou 3 aviões Boeing caíssem no país, levando todos os passageiros e tripulação a óbito. Está longe de ser uma "gripezinha" ou "coisa de gente fresca".
Na Zona da Mata mineira, segundo boletim da SES-MG de 24 de maio, os números apontam que Juiz de Fora lidera o ranking com 503 casos. Muriaé vem em seguida, com 128 casos, Carangola tem 54 casos, e Ubá vem em seguida com 45 confirmados. A Zona da Mata é a segunda região de MG com mais casos, atrás apenas da região metropolitana de Belo Horizonte.
Expresso minhas condolências a todas as famílias que tiveram seus entes ceifados pela doença, minha torcida pela plena recuperação dos infectados e minha alegria pelos milhares que dela se recuperaram.
Todavia, não escrevo para evidenciar números. Eles estão acessíveis a todos, ainda que negligenciados. Escrevo para a reflexão sobre saúde, cidadania e bom senso. Não por acaso, a maioria dos mortos pelo novo coronavírus no Brasil são pobres, negros, favelados e indígenas. Os números, neste caso, não mentem.
Historicamente, a relação do brasileiro com as pandemias tem sido controversa. Ciência, fé e políticas públicas de saúde nunca foram fiéis aliadas na formação da "civilização brasileira". Até fins da década de 1940, os serviços de saúde limitaram-se a ações sanitaristas e de combates às epidemias. O próprio Ministério da Saúde (MS) só veio a ser criado em 1953 (453 anos após a chegada de Cabral). A história das curas de doenças no Brasil sempre esteve associada às práticas religiosas indígenas, africanas e dos benzedores cristãos. Aqui a Medicina se instalou tardiamente e até hoje é, efetivamente, para os ricos.
Cuidar do direito sanitário no Brasil das primeiras décadas do século XXI implica necessariamente a preocupação com o desenvolvimento cultural e econômico, mas sobretudo com a radicalização da democracia. A realização do direito humano à saúde exige sua localização, ao mesmo tempo, na órbita dos direitos civis e políticos, mas – igualmente – na esfera dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Infelizmente, a história conhecida da espécie humana registra alguns encontros e inúmeros confrontos entre fé e ciência. Quando uma descoberta científica contraria um dogma religioso, há duas reações possíveis: ou a revisão do dogma ou a negação da ciência. A segunda atitude, conhecida como negacionismo, alimenta o fanatismo, a intolerância e as perseguições.
Ademais, o negacionismo anticientífico não é fomentado apenas pelo dogmatismo religioso, mas também por interesses econômicos poderosos. É o caso, por exemplo, daqueles que negam as evidências do aquecimento global em virtude da concentração na atmosfera de gazes do efeito-estufa. Dezenas de milhares de pesquisadores do mundo inteiro têm trabalhado intensamente em redes de pesquisa multidisciplinares produzindo diagnósticos, prognósticos e propostas de medidas preventivas e mitigadoras. São relatórios científicos notáveis pela sua qualidade e pela diversidade de temas abordados: econômicos, sociais, tecnológicos, meteorológicos, oceanográficos, etc.
Todo esse trabalho tem sido questionado por um punhado de céticos, de reduzida ou nenhuma importância acadêmica, mas cujas declarações são reverberadas pelos grupos econômicos cujo negócio se fundamenta no uso intensivo de combustíveis fósseis e que também não se acanham de invocar preceitos religiosos. Nada de novo. Também os escravocratas até o século XIX afirmavam que as populações africanas e indígenas não tinham alma e assim justificavam seu comércio. Também a indústria tabagista procurou desqualificar e invalidar os estudos médicos que indicavam a alta letalidade do consumo de cigarros e charutos.
Portanto, realizar o direito à saúde implica a existência de profissionais e instituições do direito capazes de compreender que a participação política e a democracia são indispensáveis, mas sobretudo competentes para operar uma nova cultura jurídica. Se os interesses econômicos, políticos e o negacionismo religioso estão se sobrepondo aos interesses da saúde coletiva, cabe às instituições jurídicas a interferência necessária para o fim constitucional de "salvar vidas". Pacientes infectados estão morrendo, profissionais da saúde estão morrendo.
É evidente que a saúde depende, ao mesmo tempo, de características individuais, físicas e psicológicas, mas também do ambiente social e econômico, como está explicitamente demonstrado, escancaradamente, no perfil das vítimas abatidas pela pandemia atual.